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Data: 24/09/2014

Vote em mim

Por Luli Radfahrer em 09/09/2014 na edição 815 do Observatório da Imprensa

Reproduzido do UOL, 1/09/2014; intertítulos do OI
 

Baseado na baixa qualidade das propostas e plataformas dos candidatos a estas eleições, resolvi escrever o pronunciamento que eu gostaria de ouvir. É uma obra de ficção, que pode ser utilizada livremente por qualquer candidato, desde que cumpra o que se promete nele:

 

“Senhoras e senhores,

Pelo que se apresenta nos debates políticos e programas de governo, fica bem claro que a disputa se tornou uma forma de entretenimento, em que as grandes questões não serão tratadas.

Tanto os atuais dirigentes quanto os candidatos a seus cargos parecem ignorar o contexto em que vivemos. Falam de valores e sistemas arcaicos, como se ainda estivéssemos no século vinte. Ou se nem tivéssemos chegado a ele.

Até quando deixaremos nosso futuro nas mãos de pessoas cuja característica maior é a perplexidade com que encaram o presente? De que adianta o telefone que você leva no bolso ser mais poderoso do que o computador que você tinha há uma década – se o seu emprego corre o risco de ser engolido pelas mesmas tecnologias que criaram esse telefone?

Estamos no início da mais dramática mudança na ordem internacional em vários séculos. Ela será irresistível e terá a força de uma infecção. E vai se espalhar para todos os aspectos das nossas vidas. Não acontecerá de uma só vez, mas deverá ser um processo contínuo. Seu rolo compressor vai moer instituições que pareciam inabaláveis e transferir poderes que pareciam consolidados.

Não parece haver, em meus oponentes, a capacidade ou mesmo o interesse em enfrentar essa nova situação. Falta-lhes o vocabulário e a compreensão. Corrompidos por desejo de poder e prestígio, não percebem como são desqualificados para a tarefa que se propõem a realizar.

Eu não criei a mudança, nem sou responsável por ela. Mas compreendo sua dimensão e sei me movimentar nela. Sei que inovações como impressão 3D, cidades inteligentes e automação residencial terão impacto muito mais duradouro sobre nossa economia do que qualquer Copa ou Olimpíada, trazendo prosperidade sustentável para milhões de pessoas.

Sei que preciso criar condições para integrar tecnologia da informação, biotecnologia e nanotecnologia em técnicas industriais para ter um dos melhores parques industriais do mundo. Meus oponentes mal fazem ideia do significado desses termos. O governo tenta navegar em botes de fibra ótica.

Nossas instituições precisam se adaptar para que não fiquem presas ao mundo medieval em que foram criadas. Acima de qualquer partido ou ideologia, é preciso repensar o mundo e nossa postura nele. Nenhum debate sobre aquecimento global, pobreza, educação ou desenvolvimento fará sentido sem uma estratégia de longo prazo.

E justamente isso é o que mais falta hoje. Em vez de se preparar para o futuro, muitos gestores, em sua ignorância, seguem o caminho previsível, com ajustes mínimos nas políticas atuais e mudanças incrementais para instituições à beira do colapso.

Crescimento sustentável

Como o gato na rodovia, frente ao caminhão sem freio, nossa classe dirigente está paralisada, e o atropelamento é iminente. Não parece haver a compreensão da velocidade impressionante com que a mudança ocorre, da imensidão dos desafios, das falhas perturbadoras e da incapacidade de lidar com novos problemas usando as velhas ferramentas. Quantas vezes teremos que ouvir Bob Dylan, Chico Buarque, Milton Nascimento e Geraldo Vandré para tomarmos consciência de que é preciso atualizar o discurso?

Não sou de Direita nem de Esquerda. Não há mais Direita nem esquerda. Não se pode mais reduzir o mundo a rótulos, castas e crenças. Riquezas são diferenças.

Seria tão bom se vivêssemos em uma época que a tecnologia e a democracia acabassem com a imprevisibilidade, deixando o cenário claro para ser cuidadosamente mapeado e planejado.
Seria lindo se o mundo fosse mais simples.

Ele não é. Mas pode ser administrado.

Nossas comunidades, reais e virtuais, desenvolvem padrões autônomos a partir de milhões de iniciativas independentes. É preciso compreendê-los para criar novas políticas. Só assim poderemos lançar mão de seu potencial.

O legado de séculos de história ainda é válido, mas não é mais suficiente. Não adianta mudar para cidades bucólicas. Elas não existem mais. Tudo está interligado. Irremediavelmente.

A mudança é tão necessária quanto inevitável. Não podemos rejeitá-la por preguiça, conservadorismo, razões pessoais ou emocionais. Cada um precisa fazer a sua parte. Não adianta culpar o outro, nem sentir pena de si próprio.

Acredito que a ignorância é uma maldição. Mas a Escola, como está, não é a resposta. Precisamos de uma formação para a complexidade, que integre Filosofia com Engenharia, Matemática com Biologia. Precisamos reforçar a pesquisa nas nossas universidades, não privatizá-las ou criar estratégias que enfraqueçam a qualidade do ensino superior. Só ele impedirá que, como China e Índia, nos tornemos uma gigantesca sweatshop.
Boa parte das profissões que terão destaque mundial ainda não foram inventadas. O caminho para elas é tão novo quanto as próprias carreiras. Ele pode ser desenvolvido aqui.

É um caminho sem volta, mas para isso é preciso pensar no futuro. Não adianta engatar a marcha-a-ré da religião ou dos ´valores tradicionais´.

Não acredito em Deus, mas em redes. Não me importo se você é católico, evangélico, palmeirense ou vegetariano. Já aviso que, a princípio, você não deverá gostar muito de mim.

Meu objetivo é deixar sua vida melhor, não mais fácil. Minha equipe é composta por engenheiros que não foram trabalhar em bancos de investimentos; por sociólogos que compreendem que o mundo mudou desde 1968; por empresários empenhados em ganhar competitividade por criatividade e inovação, não por reservas de mercado ou subsídios; por economistas proibidos a usar, para ganho pessoal, as informações privilegiadas com que trabalharão.

Acreditamos que e redução da pobreza não virá por programa de transferência de renda, como o Bolsa Família, mas pelo crescimento econômico.

Clap clap clap

Não estarei no Facebook, nem na TV. Mas você saberá onde me encontrar. Meu programa será uma Wiki, aberto à edição pública. Minhas contas serão participativas. Todas as minhas reuniões serão gravadas. O Grande Irmão precisa vigiar o Governo, não o Povo.

Se você acredita que sistema está corrompido, e que a melhor forma de mudá-lo é com hackers, não com bombas, nem com balas de borracha, vote em mim.

Não prometo que será fácil. Nunca é.

Muito obrigado.”


(aplausos tímidos, protocolares, das dez pessoas que sobraram na audiência) 

***

Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da Escola de Comunicações e Artes da USP, autor do livro Enciclopédia da Nuvemseu blog

 




 

 

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