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  O seu voto conta mesmo? (2ª parte)

Data: 19/04/2014

O seu voto conta mesmo?

Por Pedro Antonio Dourado de Rezende em 15/04/2014, Observatório da Imprensa, edição 794 

Em quem acreditar?

Na questão da assinatura digital em sistemas de votação, por trás do simplismo de refrões para cantigas de ninar em berço esplêndido se manifesta uma instabilidade estrutural na dinâmica de riscos, à qual interesses conflitantes serão expostos, quando o sistema for puramente eletrônico (1ª geração). Isso explico, e exemplifico com um estudo anterior de caso – o nosso –, em contribuição à pesquisa multidisciplinar independente impulsionada por aquele fiasco nos EUA. No nosso, a instabilidade atinge o tal critério, que vem funcionando assim: para verificação positiva de resultados, vale cantigas de propaganda; para a negativa, o vale-tudo do rigor jurisprudencial sobre prova documental. 

Ron Rivest, um dos autores da técnica pioneira para assinatura digital (RSA, usada pelo TSE no SIE), enquanto liderava o grupo que iria editar as diretrizes VVSG também percebeu que o mecanismo inventado por ele é impróprio para fundar a estabilização de riscos em sistemas eletrônicos de votação, e cunhou o critério da dependência de software para classificá-los. A partir daí, seu grupo propôs a VVPAT como diretriz de projeto para essa estabilidade (2ª geração). Mas estabilidade não é tudo. Rivest então adaptou o princípio E2E para a auditabilidade de sistemas VVPAT, e com outro grupo inventou um sistema (Scantegrity) que desentranha impasses com truncagens em cadeias de custódia (3ª geração).

Sistemas de 3ª geração podem, sim, usar assinatura digital, mas como peça integrada à do registro material do voto (por exemplo, em redes criprográficas mix & mesh, base dos sistemas Scantegrity e Wombat), sendo a última que funda a estabilização de riscos nesse estágio de evolução dos sistemas de votação. Adiante examinaremos “formas de se verificar o resultado na internet”, mas antes, sobre formação histórico-cultural (da nossa): ainda que donos de caixas-cinza e seus asseclas exorcizem com desinformação a classificação histórica desta evolução em gerações, ainda que se façam de surdos ou sonsos (senão de mais sabidos) ao testemunho prático do inventor da peça, sobre o perigo de se usá-la como sacramento ou amuleto triunfal em cantigas mágicas, o encanto sacramental adolescente um dia se quebra. Em cada candidato que sente uma mordida DRE, quando tenta enfrentá-la nas tribunas dos santuários da denominação eleitoral da seita do santo byte, e a rude zoeira ali bramida lhe desperta do feitiço. Em cada eleitor que se escandaliza com o atrevimento de políticos, quando percebe que são eleitos através de um sistema onde invisível + irrastreável é confundido com = extinto, se pergunta onde pode estar oculta a mãe de todas as fraudes e a ficha cai: que feitiço seria este? A palavra abracadabra é: “segurança da urna” (ou “do voto”). A mágica é fazer conotar a) onde significa b): 

>> Segurança a): no sentido da segurança de eleitores 

1) com direito a voto e à lisura do pleito, 

2) contra eventuais manipulações indevidas do processo, 

3) de quaisquer origens ou formas de penetração no sistema, 

4) através do qual tais manipulações sejam detectáveis por fiscalização.

>> Segurança b): no sentido da segurança de executores do processo

1) com direito de acesso ao sistema para programá-lo, controlá-lo ou operá-lo,

2) contra eventuais detecções por fiscalização,

3) de quaisquer deslizes por inépcia ou má fé,

4) através dos quais se configure risco à lisura do pleito.

Antes de voltarmos à réplica, fica a pergunta: Será que o seu voto conta mesmo?

“Diz o ex-ministro, ainda, que ‘na estrutura atual de votação, todos os votos das diversas zonas eleitorais são transferidos para o Tribunal Regional Eleitoral’. Trata-se de uma afirmativa equivocada, pois, na verdade, os votos, antes de serem totalizados pelos Tribunais Regionais nas eleições gerais e pelas zonas eleitorais nas eleições municipais, são validados pelo Tribunal Superior Eleitoral, em Brasília, que verifica eventual tentativa de violação da urna eletrônica. A seguir, discorre sobre a hipótese de ... fraude de cadastro ... Por fim, ignora o ex-ministro o fato de que o TSE está promovendo em todo o país o recadastramento biométrico dos eleitores, havendo a previsão de que nas eleições deste ano mais de 22 milhões de eleitores já sejam identificados pelas digitais.”

Alguns fatos sobre equívocos. Primeiro, a única forma possível do TSE verificar, a partir de votos recebidos, se houve violação na urna, é por validação da assinatura digital desta urna no BU lido da mídia de resultados (pendrive) que teria saído dela; mas como a chave de verificação é a mesma para todas as urnas de um mesmo estado (apesar das recomendações externas em contrário), e a chave de assinatura fica às claras no binário do software, seria tolice tentar forjar BU´s com urna ou software preparados em outro estado. Ainda, a réplica omite o ponto de entrada no trajeto, em zonas eleitorais ou polos de informática, onde fraudes na transmissão podem ser preparadas: há notícia de cerimônia de geração de mídias (preparação das urnas) onde o log respectivo indicava o computador que gera as mídias sendo ligado de madrugada, horas antes da marcada em edital para início da cerimônia, abrindo uma porta para a fraude que chamo das “urnas pré-clonadas”. Como não é lançado em log, nem consta em ata, o número de mídias de resultados (ao contrário dos outros tipos) preparadas na cerimônia, uma gaveta no cartório que amanheça cheia de pendrives “extras”, se pré-gravados com BU´s forjados e devidamente cifrados e assinados, pode virar ponto de baldeação para os pendrives que chegarão no final da votação para leitura e transmissão. Se a gaveta for operada por quem se encarrega de abrir tais pendrives e transmitir seu conteúdo naquele dia (via Sistema Transportador), a falta de rubrica do mesário no envoltório de plástico não deve chamar atenção nesse furtivo e curto trajeto físico. Então, não faria sentido os votos passarem antes no TSE pelo motivo alegado.

Segundo, se por “estrutura atual” entendermos incluídas as duas últimas votações oficiais, então a correção feita ao ex-ministro contradiz em princípio um e-mail do TSE, enviado em resposta a quem também quis saber o mesmo e perguntou diretamente: as totalizações seriam feitas no TRE (e não nas zonas) em eleições municipais, e, pelo contexto, quiçá no TSE (e não nos TRE´s) nas demais. É importante mencionar que os normas e documentos publicados pelo TSE não esclarecem onde e como se deve realizar a totalização. Tecnicamente, um totalizador deve ser a instância primária de um banco de dados, ou seja, aquela que controla persistência e consistência de seus registros (no caso, oriundos de BU´s), entre si e com outras instâncias (cópias deste banco); e a totalização per se, o controle para atualização (gravação) desses registros naquela instância. O totalizador tem sede física em algum computador de alta capacidade de armazenamento e processamento, e a totalização per se tem sede virtual na posse da senha de administrador deste banco de dados e nos computadores configurados para permitirem acesso através dela. Pode-se também considerar a totalização em sentido latu, que é o acesso a esse banco de dados apenas para leitura e somas em tabelas, a qual terá sede virtual na posse de uma senha de usuário comum desse banco de dados e nos computadores que permitem acessá-lo através delas. 

Assim, tal contradição pode então ser apenas aparente, se a réplica estiver se referindo à totalização latu sensu, enquanto o e-mail do TSE, à totalização per se. Em todo caso, o público continua às escuras com respeito às sedes do totalizador e da totalização per se, em ambas as situações (votação municipal e geral). Enquanto nesta lacuna, na percepção de quem não se entorpece com o chá do santo byte que é servido em propagandas, cabem impressões de que os reais controladores da eleição se dão a prerrogativa abusiva de: ou improvisar; ou fazer coisas que não querem que sejam vistas por fiscais in loco; ou tratar fiscais como idiotas ou suspeitos, durante a totalização per se (fase da votação onde qualquer desvio será definitivo, a menos de impugnação bem sucedida, algo inédito com esse sistema de 1ª geração).

Terceiro, dos dois pontos anteriores se destaca a pergunta de fundo: em quem acreditar quando a autoridade eleitoral fala ou se cala? A maioria desses “equívocos”, sobre totalização especialmente, podem ser atribuídos a dois fatores: f 1) cerceamento da fiscalização externa por interpretação excessivamente restritiva ou violação contumaz do Art. 66 da Lei 9.504/97 e outros direitos de candidato ou eleitor, por parte de autoridades eleitorais; f 2) informação truncada ou despistante (desinformação?), sobre totalização principalmente, oriunda de autoridade eleitoral.

Violação escancarada

Sobre f 1): Algum representante da OAB ou do MPF já acompanhou alguma totalização in loco, ao lado do terminal onde um juiz responsável ou administrador do banco de dados controla a totalização per se? De onde se libera as parcelas em BU´s eletrônicos que chegam via internet para serem gravadas no totalizador, e onde se pode interceptar os acessos de usuários comuns do respectivo banco de dados para consultas que efetuam as somas que serão periodicamente divulgadas ao público como resultados parciais? Ao lado desse juiz ou administrador cuja senha pode controlar tudo isso, e cuja possível interferência em consultas para somas pode causar “acidentes”, como o que atropelou o primeiro turno em 2002 com uma parcial de 40 mil votos negativos, solenemente ignorado pela mídia corporativa que deita em verba publicitária? Alguém explica por que são necessárias 72 horas para se divulgar as parcelas (BU´s na web) de uma soma (votação final de cada candidato) já oficialmente proclamada, com uma explicação que não presuma idiotice de quem pergunta? Não vejo outra possível razão prática além da de ganhar tempo para contas de chegar com parcelas, para distribuir desvios inseridos em resultados parciais e finais por interceptação de consultas durante a totalização. Tempo para tais contas de chegar constitui grave risco de fraude em situações onde a cadeia de custódia das parcelas é truncada para a fiscalização, por exemplo no início da cadeia, com bloqueio seletivo à coleta in loco do BU impresso e assinado pelo mesário. 

Tal documento é essencial para a fiscalização e deveria estar disponível para cada fiscal de partido interessado, em cada seção eleitoral. Fora do mundo fantasioso desenhado nas Resoluções, em situações reais onde tenham sido sonegados ou não tenham sido coletados em proporção suficiente, uma demora na publicação dos BU´s na web, após a divulgação do resultado oficial, dá tempo para rastrear quais seções eleitorais podem ter parcelas alteradas em contas de chegar, que fechem o batimento com um resultado final manipulado. A saber, todas aquelas seções onde a vítima não coletou o documento eficaz. Nesse diapasão, com relação à última eleição (municipal de 2012), causa espécie a linguagem dos Art. 99º e 100º da Resolução TSE 23.372/11. Tais disposições normativas podem funcionar como cobertura infralegal para armadilhas que visem a truncar a cadeia de custódia da fiscalização em sua origem. Para que serviriam “comitês interpartidários” naquela eleição, senão para intermediação desnecessária mas com capacidade para sabotar a eficácia na fiscalização de qualquer partido que se tome por alvo? Na dúvida, se algum candidato teria desta forma sido vitimado naquela eleição, mencionaremos adiante o caso apresentado à Polícia Federal no Rio de Janeiro no inquérito nº 238/2012, envolvendo o município de Saquarema, com denúncia de interceptação de transmissão de BUs, via canal lateral do provedor de conexão à internet (side channel attack), durante a totalização (caso Saquarema 2012).

Sobre f 2): Antes que alguém pense em dano moral pela insinuação de que a Justiça Eleitoral possa estar desinformando, remeto à experiência pessoal, devidamente documentada, em que o alvo da desinformação estava no meu próprio trabalho de pesquisa. Se a Justiça Eleitoral desinforma ou não, esta é uma questão que já foi esclarecida alhures; a questão aqui e agora é se ela está ou não desinformando com respeito à totalização. Diante do exposto até aqui sobre o tema, seria melhor – para a segurança a) – que algum fiscal geral, como da OAB ou do MPF por exemplo, acompanhasse in loco as operações de totalização per se no dia da eleição. Caso alguma dessas instituições, por decisão de seus dirigentes, decida exercer plenamente sua respectiva vocação ou função constitucional de fiscalizar o Poder Judiciário, o primeiro desafio é saber onde fica, em cada eleição, a sede virtual da totalização per se. Para que o seu designado fiscal possa estar atento ao lado daquele certo administrador com aquela certa senha, naquele certo computador da Justiça Eleitoral, durante a totalização. Para estes dirigentes, a recomendação é a mesma oferecida aos que acham que arquivos de log obtíveis são úteis à fiscalização: desçam do marasmo entorpecido, e tentem. Mas aqui vou além, devido à responsabilidade social das respectivas instituições: tentem, e nos mantenham informados do progresso. 

Para uma ideia da dificuldade abstrata (desequilíbrio de riscos) de se fiscalizar a totalização com sistema de 1ª geração, e impossibilidade concreta no nosso caso (com o SIE do TSE), chegamos ao caso Saquarema 2012. Em 10/12/2012, num seminário organizado pelo Instituto Republicano e pela Fundação Alberto Pasqualini, um jovem apresentou-se para confirmar de público o que admitira nos autos do supracitado inquérito. Que teria invadido a rede interna do TRE do Rio de Janeiro para, com ajuda e participação de elementos de uma empresa prestadora de serviços (de conexão à internet) ao TRE-RJ, leiloar lotes de votos desviados de candidatos vítimas, durante a totalização, interceptando na origem (antes da criptografia atuar) a rede de transmissão de dados utilizada pela Justiça Eleitoral para executar centralizadamente (?) a totalização. Seis horas após ser divulgado o áudio desse depoimento, a página do site do TSE com os BU´s web tinha dado pane. E zero na mídia corporativa. Avisado o TSE no dia seguinte, a pane continuou, pelo menos até o fim de maio de 2013, quando começaram a aparecer apenas os de novas eleições (suplementares). Até onde sei, tal inquérito continua parado, como se as denúncias de Edward Snowden sobre o poder de interceptação e manipulação das grandes empresas de TI a serviço de certos interesses fosse mera fantasia. Enquanto a cantilena mágica do “basta verificar os BU´s na web” continua iludindo a massa entorpecida, incluindo alunos que escrevem (sob orientação) programas para executar tal verificação, mas nunca conseguem no site do TSE acesso atualizado ou completo aos dados necessários.

Quarto, sobre acusação de ignorância, por abordar o risco de fraude de cadastro sem relacioná-lo à iniciativa de recadastramento biométrico. Declaro inocência, se puder inverter o sentido da relação. Venho tentando preencher sobremaneira várias lacunas no imaginário coletivo sobre essa relação, porém, pela direção oposta: partindo de uma análise esclarecedora da iniciativa em si, e não da sua suposta justificativa, pois o respectivo risco é universal em sistemas de votação. Mesmo que assim perca inocência: não quanto à ignorância da relação, mas quanto à sua componente causal. Começando pela eficácia: a primeira descoberta foi de que, conduzida a iniciativa como foi e vem sendo, o único efeito mensurável que pudemos observar a partir de dados do TSE, referentes à primeira eleição com amostragem significativa (2010), foi ao contrário do esperado. Ou melhor, ao contrário do conotado como líquido e certo pela propaganda oficial massiva. Por ser um mecanismo probabilístico de identificação, seu uso em eleição obrigatória requer mecanismo de contingência para cuidar de (alegados) falsos negativos, que acabou sendo o mesmo de antes (liberação por senha), e o efeito que conseguimos medir foi apenas o de camuflagem ao risco (muitos falsos negativos alegados, com menos fiscalização), como descrevo em memorial e em audiência na Comissão de Ciência, Tecnologia e Informática do Senado. Será que na próxima eleição veremos muitos falsos positivos, cujo efeito técnico é o de baixar os falsos negativos? Seria mais uma camada de camuflagem ao risco que se alega combater.

Depois, sobre a obrigatoriedade da entrega de dados biométricos. Atropelada numa colisão de interesses, na ADI 4543. Talvez um acidente durante repetição do salto triplo carpado sobre a prerrogativa dos outros Poderes demandarem mudanças em direção à VVPAT (o primeiro salto foi na medida cautelar). O bebê da obrigatoriedade (autorização para tal, no § 5º do Art. 5º da Lei 12.034/09) foi jogado pela janela com a água do banho: a cláusula VVPAT (caput do Art. 5º) e a de desconexão entre terminal-que-identifica e urna-onde-vota (condicional no § 5º). A votação da ADI foi agendada um dia após a audiência na CCTI, e realizada em três semanas. Outro acidente próximo envolveu o helicóptero do senador que presidia a CCTI, dois meses depois: abalroado por um grande carregamento de pó branco, que penetrou sob as horas de folga do piloto, num cruzamento com a Polícia Federal. Só no Brasil as autoridades competentes se desentendem sobre como adaptar VVPAT a um sistema baseado em DRE sem quebrar garantias de sigilo do voto (países que tentaram, alegam sucesso). Ou então tais garantias sempre estiveram quebradas pela inimitável e resistente conexão terminal-urna, e a mudança balança o barco. Em 2009 essa conexão aguentou firme o choque da milionária licitação 76/2009 contra a recém sancionada Lei 12.034/09, quando poderia ter caído. O meme “sigilo do voto” é poderoso, e requer cautela no manejo.

Por fim, a busca de um motivo real para a biometrização obrigatória. Um mais plausível que o alardeado na propaganda, porém falseado em nossa análise de eficácia em 2010. Outra novela. Com o provimento pelo STF da medida cautelar que suspendeu o Art. 5º da Lei 12.034/09 in toto em 2011, e a consequente repristinação da Lei 7.444/85, os membros mais ativos do CMind se organizaram para viabilizar demandas à Justiça Eleitoral, por respeito ao direito à privacidade de eleitores incomodados com as inconsistências, lacunas e irregularidades em tal iniciativa, agora sem base legal para seu caráter coercitivo (que era, conforme a Resolução TSE 23.335/11, o Art. 5º posteriormente revogado em novembro de 2013). Organizaram então o Movimento de Obediência Civil, lançado em julho de 2013, e o seminário “Ética, Privacidade e uso indiscriminado de Biometria em tempos de Drones“, junto ao Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília. Uma pesquisa em preparação para o seminário encontrou documentos que revelavam a existência de vários convênios entre o TSE e empresas ou outros órgãos para compartilhamento de dados, em que o TSE entrega ou faz escambo com o cadastro eleitoral, em flagrante violação do Art. 9º da Lei 7.444/85. O jornal Estado de S.Paulo se interessou pelo escambo com a empresa Serasa, a notícia repercutiu, a ponto do TSE criar uma comissão para estudá-los.

“Fora do escopo”

Prosseguindo na réplica, lemos:

“É importante ainda mencionar que é possível fiscalizar todas as fases de preparação das eleições, sendo inclusive realizada auditoria, no dia das eleições, nas urnas eletrônicas, por meio da chamada ‘votação paralela’, acompanhada de fiscais dos partidos políticos e representantes do Ministério Público Eleitoral e da OAB. O ex-ministro pode se informar a respeito lendo as resoluções do TSE que tratam do assunto. Dessa forma, como o próprio articulista diz, ‘até o momento a população não tem restrições às mudanças, nem se constatou nenhum desvio grave. Entretanto, institutos de pesquisas fizeram alguns prognósticos que depois não se confirmaram nas urnas’. Digo mais: não se constatou desvio de votos, pois a vontade do eleitor é respeitada pela Justiça Eleitoral. (...)” 

Na citação anterior a esta acima, reticências indicam um trecho suprimido. Nele o replicante maneja, com destreza aritmética, seu douto domínio de estatísticas eleitorais ao comentar sobre a hipótese da fraude de cadastro (veja na réplica). Lá são exploradas, com raciocínio cristalino, lacunas no correspondente domínio do ex-ministro, que apresentara um exemplo hipotético de fraude de cadastro. Com destreza, o exemplo apresentado é desqualificado, mas sem entrar propriamente na questão de fundo: se o SIE atenua ou amplifica o risco de abuso de poder dos mesários, e como. E logo passa ao tema da biometrização da identificação do eleitor (que mereceu esclarecimentos acima), conotando a iniciativa como medida definitiva contra esse tipo de fraude, único visível em sistemas de 1ª geração e inevitável em todas.

Pela destreza numérica demonstrada na desqualificação daquele exemplo hipotético, podemos supor boa aptidão para acompanhar raciocínio semelhante. É importante então mencionar fatos mais relevantes do que a inconsistência de um exemplo hipotético em meio a chavões de propaganda enganosa repetidos ad nauseum como hipnose para entorpecidos. Abaixo, deduzo a total ineficácia da chamada votação paralela como mecanismo fiscalizatório externo, qualificação que na ocasião nomeei como candidata ao título mundial de mais tola medida “de segurança”.

No início de 2003, o então presidente do TSE, Nelson Jobim, foi ao Congresso Nacional apresentar proposta de reforma eleitoral que incluía um mecanismo denominado “teste de votação paralela”. A alegada função desse mecanismo seria a de comprovar a correta contagem de votos pelas urnas DRE numa eleição oficial. O mesmo estava previsto para ser implementado em 2004, como também o mecanismo de auditagem por recontagem dos votos impressos numa amostra de seções eleitorais (modo impresso da VVPAT, que ainda não havia sido promovida a diretriz VVSG), por força da Lei 10.408/02. Esta lei, que nascera da indignação popular com as revelações do escândalo do painel do Senado, tivera sua tramitação no Congresso protelada por ingerências de donos de caixas-cinza, a pretexto de estarem preparando propostas de emenda ao projeto. O teste de votação paralela havia sido sugerido por um fiscal de partido, e fora incluído no Projeto de Lei para superar a resistência desse partido à sua aprovação, que só ocorreu em janeiro de 2002, menos de um ano para a eleição seguinte. Depois de sancionada em Lei, a 10.408/02, o chefe dos proteladores, agora na função concomitante de julgador-mor no domínio eleitoral, mudou de ideia sobre a validade, para a eleição de 2012 (menos de um ano), dos dispositivos que mandam implementar os dois mecanismos, mas ofereceu-se para “testa-los”, a título de “experiência”.

Na proposta de reforma apresentada, logo após a eleição de 2002, pode-se ver o que acontece quando uma entidade pública testa mecanismos pelos quais ela mesma será fiscalizada. A justificativa apresentada para manter a inclusão do mecanismo de votação paralela em reforma legislativa foi o “alto grau de excelência” com que o teste “validou o processo de votação em 2002”, e, para se excluir o de auditoria por recontagem manual, foi o alto grau de execração que ela recebeu onde o voto foi impresso naquela eleição. O controle absoluto que os donos de caixas-cinza de 1ª geração exercem, tanto sobre o software de votação quanto sobre as condições de execução dos mecanismos fiscalizatórios, permitiu-lhes um meticuloso planejamento e preparo. Tanto para o teste de votação paralela, a cujo respeito o leitor pode se informar lendo as resoluções do TSE que tratam do assunto (como recomenda a réplica), quanto para o da impressão do voto para auditoria por recontagem, a cujo respeito a propaganda oficial registra apenas aquela execração (e nada sobre os preparos para o “teste”). O rito em ambos os experimentos foi meticulosamente planejado para calibrar o tempo no ato de votar: na votação paralela, aumentando o tempo mínimo para cada voto em pelo menos três vezes, e com a impressão, o tempo médio o bastante para irritar eleitores com longas filas e autoridades com muitas contingências. 

O rito imposto ao mecanismo de votação paralela, prescrito nas mencionadas resoluções do TSE, permite ao software na urna (sorteada para teste) detectar, pelo longo tempo mínimo entre os votos e pelo índice exorbitante de abstinência (em torno de 67%), que aquela urna está funcionando em teste, permitindo ao software abster-se de fraudar naquela situação, caso esteja contaminado para desviar votos. Enquanto o rito imposto ao mecanismo de auditoria por recontagem, implementado no Distrito Federal na eleição de 2002 com todas as urnas DRE adaptadas para imprimir voto (visível atrás de um vidro antes da confirmação, que causava ejeção da papeleta do voto para uma sacola lacrada sem o eleitor tocá-la), impediu um candidato a governador que suspeitou de fraude de obter recontagem para impugnar a eleição (o pedido foi negado por unanimidade no TRE-DF).

Então, em que sentido o primeiro mecanismo sozinho teria validado aquela eleição, como afirmou Jobim no Congresso? No sentido da teoria da prova praticada por donos de caixas-cinza: para prova positiva, vale a propaganda oficial; para negativa, o vale-tudo da jurisprudência, inclusive, como no caso do Distrito Federal, o “direito” do réu – que aqui é antes juiz – de não se obrigar a produzir provas contra si – si que aqui é antes um ente público, cujos atos se regem por princípios republicanos e constitucionais de transparência etc.

Para quem isto seria absurdo, que essa teoria explique certas práticas da autoridade eleitoral, que vem sustentando uma longeva imagem de inviolabilidade do sistema que ela mesma administra, cabe escolher outra teoria que as explique melhor. A candidata implícita da propaganda oficial é a teoria de que, com tal sistema, os fraudadores históricos desistiram e teriam se aposentado. Será? Para que o leitor possa escolher bem sua teoria favorita, cabe-me oferecer mais detalhes do exemplo que trouxe à baila esta questão, sustentando-o melhor como bom indício para minha escolha. Posso antecipar-me ao leitor e, sobre um detalhe crucial perguntar: como saber que esse teste de votação paralela tem índice de abstinência bem acima do normal? Como sabe o autor que fica em torno de 67%, quando o normal seria entre e 15 e 20%? Sei que foi assim em 2002. Naquele teste, o do “alto grau de excelência”, porque alguns eleitores atentos e dedicados, desconfiados de tanto entusiasmo oficial só por aquela ideia de um fiscal de partido, e do rito estabelecido para a estreia entulhado de burocracia inútil, se organizaram antes nas listas do forum do voto eletrônico para acompanhar do início ao fim coletando dados. A média entre os estados observados ficou em menos de 140 votos simulados por urna testada, enquanto a eleição tinha média de 430 eleitores por urna, com índices de abstenção como os de hoje. 

Mas como saber se a abstenção na votação paralela exorbitou também em eleições seguintes? Hoje só podemos saber indiretamente, ou seja, inferindo. Hoje podemos aprender com um Corregedor Eleitoral que a média de eleitores por urna está em torno de 550, com abstenção de 17,5%, em média. E podemos nos informar sobre a carga de burocracia inútil no rito do teste lendo as respectivas resoluções do TSE, como sugere o Corregedor, e comparando a de 2002 com as seguintes para concluir que tais cargas tem sido equiparáveis, e que portanto aquela exorbitância teria então até crescido. Mas se o leitor tem dúvida e quiser saber diretamente, sou eu agora a sugerir: que tente.

Durante a fase de consultas aos projetos de Resolução anterior à promulgação, através de assessoria a partidos políticos interessados, membros do CMInd tem tentado, sem nenhum sucesso, que o TSE pelo menos se comprometa a divulgá-los. Relativa à eleição de 2008 pelo PDT por exemplo, foi sugerido que a resolução correspondente incluísse a determinação de que os dados referidos acima fossem incluídos no relatório do teste de votação paralela realizado em cada TRE, e que esses relatórios sejam entregues a partidos que os solicitarem, mas a sugestão foi negada (assim como os relatórios) sob o argumento de as solicitações “estarem fora do escopo” do contrato com a empresa terceirizada para executar os tais testes.

(continua...)




 

 

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