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  Migração, cultura e o princípio da presunção de inocência

Data: 18/11/2015

 

 

Migração, cultura e o princípio da presunção de inocência

Em 

 

Tem me preocupado bastante o rumo (legítimo) que o movimento liberal brasileiro tem tomado, nos últimos dias, acerca da questão migratória muçulmana na Europa, especialmente após os atentados em Paris nos últimos dias.

A visão liberal sempre foi tradicionalmente pró-migração, dentro da idéia de que imigrantes em regra agregam à economia, principalmente realizando trabalhos que cidadãos locais mais produtivos preferem não fazer.

Claro que a questão econômica não está em voga na discussão, e sim a questão cultural. Vejo amigos muito preocupados com os ataques à cultura cristã ocidental, e um perigo concreto de islamização da Europa com o fim das nossas instituições, advogando assim pela restrição, às vezes agressiva, da migração islâmica para o velho continente.

Parece-me interessante começar a discutir a questão delineando alguns conceitos que me pareceram confusos ao longo dos debates. Vou me ater especificamente aos conceitos de (i) liberdade cultural; (ii) relativismo moral cultural e; (iii) multiculturalismo.

Liberdade cultural é o direito que um determinado grupo de indivíduos tem de construir uma identidade cultural própria que tende a uní-los de forma coesa, normalmente de maneira natural através dos costumes, mas que pode vir a ocorrer de maneira forçada, através de engenharia cultural, embora este último caso não seja chancelado pelo liberalismo.

De forma geral, o liberalismo defende a liberdade cultural, mas não sem críticas e debates internos. O problema da moralidade está no limite dessa liberdade. Seria legítima uma cultura que promove assassinato de bebês, sacrifícios humanos, castigos físicos extremos ou mutilação genital feminina, entre outros horrores? Ou a liberdade cultural pressupõe certos limites delineados por um direito humano natural mínimo de preservação da vida, da liberdade individual e da propriedade?

Daí vem, inclusive, a discussão acerca do relativismo moral cultural. A pergunta base desse problema é: existe cultura inferior e superior?

Se uma pessoa entende que a moral é sempre relativa, então não existe cultura inferior e superior, e essa pessoa será indiscutivelmente sempre a favor da liberdade cultural plena.

Se uma pessoa entende que a moral não é relativa, e que, portanto, existem certos paradigmas morais inegociáveis, então existiria uma gradação entre culturas, e uma cultura superior deve sobressair sobre uma inferior na busca por uma sociedade melhor.

Mas como descobrir qual é essa cultura superior, através da força ou do diálogo? Se uma cultura precisa ser imposta pela força, me parece difícil falar que ela é superior. Por outro lado, a melhor maneira de dialogar é através da convivência, mas a convivência pode ser dura, e aqui entra o debate do multiculturalismo.

Multiculturalismo é, por definição, a coexistência de várias culturas num mesmo território, podendo ser esse território uma cidade, um estado ou um país. O multiculturalismo pode ser de duas vertentes, o tolerante e o impositivo.

Multiculturalismo tolerante é a visão de que várias culturas podem coexistir de maneira pacífica, próximas umas das outras. Uma sociedade liberal aberta, como a descrita por Popper, tem na sua lógica a idéia de multiculturalismo tolerante, de pessoas vivendo de maneira pacífica, ainda que sem aceitar as diferenças culturais do próximo.

Aceitar é diferente de tolerar. Tolerância pressupõe conviver com o que é diferente pacificamente, mas discordando do outro. Aceitação é ser obrigado a gostar daquilo que a princípio lhe dá desconforto.

Já o multiculturalismo impositivo é aquele que obriga todos os membros de uma sociedade a acharem normal ou correto aquilo que vai contra a cultura tradicional de um povo, buscando engenharia cultural, como promovido em regra por esquerdistas. Esse tipo de multiculturalismo é anti-liberal pela sua própria lógica.

O grande problema da sociedade aberta atual está na dificuldade de conseguir o ideal da tolerância liberal.

No âmbito interno de uma sociedade, temos dois grupos lutando paulatinamente contra a tolerância liberal, a saber: os multiculturalistas impositores esquerdistas, já relatados; e os uniculturalistas, que são contra a possibilidade de convivência de culturas distintas. Esses últimos, atrelados a uma visão intolerante de raiz neoconservadora, muitas vezes se unem aos multiculturalistas impositores, em uma aliança anti-liberal, quando lhes convém, atrasando a sociedade e reduzindo nossa liberdade.

Essa distinção entre multiculturalistas impositores esquerdistas e uniculturalistas é falsa de um ponto de vista de forma, havendo uma distinção apenas nos conteúdos. Isso porque os impositores esquerdistas, embora multiculturalistas no discurso, são uniculturalistas na prática, pois desejam na verdade a imposição de uma cultura única… marxista e anticristã! Na verdade, os dois uniculturalistas, marxistas e neoconservadores, tem todos os motivos para derrotar os reais multiculturalistas tolerantes, seus principais inimigos.

Até mesmo multiculturalistas tolerantes, como o próprio Popper, podem se mostrar, no limite, avessos à integração plena. Como diz o mestre austríaco, em uma sociedade aberta e tolerante, os intolerantes deveriam ser afastados. Esse é um pensamento perigoso, embora legítimo.

Agora eu contextualizo novamente esse multiculturalismo dentro da busca pela cultura ideal. Eu posso desde já me declarar um não relativista moral. Sou a favor de uma liberdade cultural restrita aos limites de direitos humanos mínimos, baseados na vida, liberdade e propriedade. No entanto, entendo ser essencial o multiculturalismo liberal tolerante como forma de se descobrir quais são esses direitos humanos mínimos. Dado que nossa capacidade cognitiva humana não é plena, e que nós não temos acesso pleno à essa lei natural universal, somente através do método de tentativa e erro, sempre com alguma reflexão racional, prudência e respeito (sem exageros) às tradições, é que podemos descobrir quais são esses direitos humanos inegociáveis. E a melhor maneira de se fazer isso é através da interação cultural e diálogo permanente dentro da sociedade e fora dela, respeitando e tolerando os diferentes.

Isso, claro, ainda não resolve o problema que deu partida a essa discussão, que é a presença maciça de estrangeiros de outras culturas na Europa, supostamente pondo em risco as instituições democráticas locais.

Preliminarmente devo expor minha preocupação com a postura que certos liberais estão tendo, muitos deles amigos próximos, de ignorar um dos princípios de direito penal liberal mais caros à nossa sociedade e cultura: o princípio da presunção de inocência. Ser radicalmente contra a chegada de um muçulmano à Europa porque ele seria um potencial jihadista é, concretamente falando, atacar de maneira bastante agressiva um pilar da sociedade europeia, talvez causando mais danos à nossa cultura do que um jihadista jamais faria.

Agora, voltando ao ponto, me preocupa ver que temos tão pouca fé na elevação da nossa cultura a ponto de achar que a cultura muçulmana prevalecerá sobre a nossa. Quando os bárbaros romanos invadiram a Grécia, a cultura grega prevaleceu. Quando os bárbaros germânicos invadiram Roma, a cultura romana prevaleceu. Com a vinda muçulmana maciça à Europa, por que a cultura ocidental não prevaleceria? Ou já não prevaleceu?

E se não prevaleceu, está na hora de nos perguntarmos seriamente se não há algo de muito errado na nossa cultura moderna: estado de bem-estar social, relações sexuais frívolas, imediatismo, falta de empatia com o próximo, desrespeito à família, enfraquecimento da religião, e assim por diante. Afinal, não faz sentido uma cultura supostamente superior ser engolida por uma cultura muçulmana com tantos problemas morais auto-evidentes.

Por fim, não custa ressaltar, o combate ao intolerante muçulmano que efetivamente está agindo contra a lei europeia, aplicando a Sharia em bairros ingleses, recrutando jovens pro ISIS ou destruindo propriedade privada alheia, deve ser pleno e vigoroso, de forma que essas pessoas, que em nada contribuem para o enriquecimento cultural e econômico da Europa, sejam combatidas, presas e deportadas, sempre dentro dos parâmetros que a nossa sociedade e a nossa cultura impuseram como base civilizatória: império da lei, presunção de inocência, direito a julgamento justo com contraditório e ampla defesa e rigor na aplicação da pena.

Não menos importante, devemos combater com unhas e dentes os uniculturalistas disfarçados de multiculturalistas esquerdistas, que, assim como os muçulmanos, também pretendem destruir nossa cultura de maneira perversa e insidiosa, inclusive com um falso discurso de tolerância enquanto pregam o fim da liberdade e do diálogo cultural em prol de uma ditadura de pensamento único politicamente correto. Esses são tão inimigos do verdadeiro multiculturalismo tolerante liberal quanto os muçulmanos, somente menos violentos, devendo ser combatidos na mesma medida não-violenta enquanto nessa postura se mantiverem.

 

Pena que, em tempos de intolerância, achar essa justa medida entre liberdade, segurança e diálogo cultural seja cada vez mais difícil.


Bernardo Santoro

 

 

 

 

Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UERJ), Mestrando em Economia (Universidad Francisco Marroquín) e Pós-Graduado em Economia (UERJ). Professor de Economia Política das Faculdades de Direito da UERJ e da UFRJ. Advogado e Diretor-Executivo do Instituto Liberal.




 

 

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